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Entre gerações, mulheres Kalunga reafirmam a força da educação e da saúde como instrumentos de resistência

Atualizada em 14/11/25 10:43.

Projeto Saúde Quilombola Cuidar para Resistir entrevista a anciã, Dona Procópia, e sua neta, Bia Kalunga

Texto: Eduardo Almeida

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Foto 01: Da esquerda para a direitra - O doutorando, Gabriel Francisco, o relações-públicas, Eduardo Almeida, a mestra, Bia Kalunga, Dona Procópia e a doutoranda, Thaynara Martins 

A memória, a luta e a esperança caminham juntas entre as gerações de mulheres Kalunga. Em uma conversa carregada de emoção e sabedoria, integrantes do projeto Saúde Quilombola Cuidar para Resistir, desenvolvido pelo Núcleo de Estudos em Epidemiologia e Cuidados em Doenças Transmissíveis e Agravos à Saúde Humana (NECAIH) da Faculdade de Enfermagem da Universidade Federal de Goiás (FEN/UFG) em parceria com o Governo do estado de Goiás, entrevistaram Dona Procópia dos Santos Rosa, de 92 anos, e sua neta Bia Kalunga, professora, liderança comunitária e pesquisadora quilombola. O encontro ocorreu em setembro de 2025, no território Kalunga, na região de Monte Alegre de Goiás, e foi um retrato vivo da continuidade de uma luta que atravessa o tempo e reafirma o poder transformador da educação e da saúde.

Antes da entrevista, os doutorandos Thaynara Martins e Gabriel Francisco, do Programa de Pós-Graduação em Enfermagem e Saúde (PPGENFS/FEN/UFG), conduziram uma conversa educativa sobre cuidados em saúde, prevenção de doenças e a importância do acompanhamento médico. A doutoranda Thaynara Martins, uma das líderes do projeto, destacou que o trabalho só é possível com o vínculo de confiança entre equipe e comunidade. “Para realizar a coleta de material biológico e as ações de cuidado, é preciso antes de tudo criar relações de escuta, respeito e troca”, explicou.

Sabedoria ancestral e a luta por dignidade

Sorridente e atenta, Dona Procópia aos 92 anos se apresentou com firmeza: “Me chamo Procópia dos Santos Rosa.” Nascida e criada na comunidade do Riachão, ela carrega na memória as histórias de um tempo em que o acesso à saúde e à educação era praticamente inexistente. “No tempo de minha avó era muito sofrido. Vivíamos da roça, do que plantamos. Nossa medicina era com plantas, com o que vinha da natureza. Minha mãe e minha avó nunca tiveram remédios nem exames. Tudo era cuidado de raiz e fé”, relembrou.

Com o passar dos anos, a anciã viu pequenas transformações se consolidarem, embora as dificuldades persistam. “Hoje as coisas estão melhores nesse sentido, mas ainda há muito a fazer. A gente precisa melhorar. Ainda há quem venha até nós sem entender o nosso jeito, a nossa história. E eu me preocupo, porque já vi muita gente chegar com más intenções. Só nós sabemos o que a gente viveu e o que passamos nesses anos”, disse.

Com uma trajetória marcada pela resistência, Dona Procópia se emociona ao ver o avanço das novas gerações. “Passei minhas lutas para meus filhos e netos. Tudo o que busco hoje é para eles, para nossa comunidade, para o povo quilombola de todo o Brasil. Não somos melhores nem piores que ninguém. Somos um povo de fé, de trabalho e de luta.”

A educação como herança e transformação

A neta, Lourdes Fernandes de Souza, mais conhecida como Bia Kalunga, apelido dado pelo avô com três dias de nascida, é uma das muitas sementes plantadas por essa luta ancestral. Hoje com 41 anos, ela é professora, mestre e liderança na comunidade. Sua história mostra que o acesso à educação transforma realidades e rompe ciclos de exclusão.

“Nunca me esqueço de quando saí da comunidade, com 11 anos, para estudar em Campos Belos. Morei em casa de família, trabalhava para ter moradia e comida e recebia apoio dos meus pais. Quando fui para Brasília, com 18 anos, trabalhava de domingo a domingo e estudava à noite. Foram anos muito difíceis, mas eu tinha um sonho: ser professora e voltar para ensinar o meu povo”, contou.

O retorno aconteceu em 2007, quando Bia conquistou uma vaga como professora na sua comunidade. “No começo, eu não tinha nenhuma experiência em sala de aula. Mas a vontade era maior que o medo. Fui aprendendo, com apoio das pedagogas, e me encontrei na educação. Desde então, são 19 anos de trabalho e muito aprendizado.”

As dificuldades eram grandes: estradas precárias, longas distâncias, transporte limitado e baixos salários. Mas a paixão pela docência manteve Bia firme. “No início, eu só tinha o ensino médio, mas sabia que precisava me formar. Em 2010 entrei na licenciatura em Educação do Campo da Universidade de Brasília (UnB), em Planaltina, e me formei em 2014. Foi um orgulho imenso, não só meu, mas de toda a comunidade.”

Ela relembra que, na época da infância, a escolarização na comunidade era precária. “Quando eu era criança, estudávamos em um barraco de palha, sentados em tocos de madeira. Eram crianças de várias idades que não sabiam ler nem escrever. Lembro até da primeira merenda escolar que chegou. Foi antes de eu me mudar para Campos Belos. A escola era um sonho do nosso povo, e ver ela construída é uma vitória.”

Hoje, Bia é exemplo e inspiração. “Minha história se entrelaça com a da minha avó. Ela é uma biblioteca viva, uma grande historiadora. Eu tive a oportunidade de estudar, mas o que ela tem é sabedoria ancestral. Cada uma fez sua parte. Agora é nossa vez de continuar a luta, de pensar novas estratégias para preservar nossa cultura, a agricultura e garantir que a comunidade permaneça no território.”

Uma nova geração que floresce

O legado familiar já ecoa na nova geração. O filho de Bia, Uriel, de 17 anos, cursa Engenharia da Computação na Universidade Federal de Goiás. “Ele estudou o fundamental e o médio aqui na comunidade e hoje está em Goiânia. Ver meu filho na universidade mostra que a luta deu frutos”, celebra.

Mesmo com os avanços, Bia destaca que ainda há desafios. “Precisamos de mais estrutura e de escolas com melhores condições, principalmente no campo digital. Hoje temos jovens formados, com graduação, mestrado e até doutorado. Isso é um orgulho imenso. Mas precisamos seguir lutando para garantir oportunidades para todos.”

Com olhar atento às novas gerações, Bia deixa um conselho: “O estudo é infinito e ninguém te toma. É preciso se posicionar, dar opiniões, ocupar espaços. Ser médico, enfermeiro, gestor. A lida na roça é digna, mas é dura. A educação abre caminhos. É por ela que podemos transformar o futuro.”

Saúde, escuta e compromisso

Ao falar sobre o projeto Saúde Quilombola Cuidar para Resistir, Bia destacou o diferencial da iniciativa: o respeito e a escuta ativa da comunidade. “O projeto é muito importante porque traz prevenção e cuidado de forma acolhedora. As equipes vêm até as casas, fazem a coleta de material biológico, os testes e os encaminhamentos.” É também um processo de educação em saúde. “O que mais me tocou foi que não foi imposto. Tivemos escolha e diálogo. Isso faz toda a diferença”, ressaltou.

Ela comparou com experiências anteriores: “Já vimos muitos projetos passarem por aqui, pesquisarem nosso povo e depois irem embora sem dar retorno. O Cuidar para Resistir é diferente, porque ele devolve os resultados, envolve a comunidade e propõe melhorias reais. Isso é o que a gente espera: parceria.”

Entre as próximas ações, está prevista para 2026 uma feira de saúde nas comunidades do território Kalunga, com a devolutiva dos resultados das pesquisas e o debate sobre políticas públicas específicas para a saúde quilombola. A proposta também dialoga com a Política Nacional de Saúde Integral da População Quilombola (PNASQ), desenvolvida pelo Ministério da Saúde.

Bia acrescenta ainda um desejo coletivo: “Queremos muito ver a implantação de uma Unidade Básica de Saúde quilombola aqui na comunidade. Isso seria um marco. Um lugar que nos acolha, que entenda nossas especificidades.”

Dona Procópia: ensinar o valor do saber

Quando questionada sobre a mensagem que deixaria para os mais jovens, Dona Procópia respondeu com simplicidade: “Sejam educados, estudem para melhorar a vida e não passar sofrimento”. Hoje, graças a neta, aprendeu a escrever o nome fazendo parte de um projeto de alfabetização de idosos que ocorreu na comunidade.

A escuta que transforma

O encontro entre os integrantes do projeto e as mulheres Kalunga mostrou, mais uma vez, que a pesquisa científica e as políticas públicas só fazem sentido quando se constroem a partir do diálogo e do respeito à história das pessoas. O “Cuidar para Resistir” tem justamente esse propósito: unir saberes, valorizar as vozes quilombolas e promover saúde e dignidade.

Ao final da conversa, a emoção tomou conta da equipe. Entre gerações, as histórias de Dona Procópia e Bia Kalunga revelam o poder da ancestralidade e da educação como sementes de resistência. O que começou com as mãos da avó, hoje floresce na sala de aula e nas universidades, mostrando que a luta das mulheres quilombolas é, sobretudo, uma luta pela vida, pelo território e pela permanência da esperança.

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Foto 02: Equipe do projeto com Dona Procópia

Fonte: Comissão de Comunicação FEN/UFG

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